O presente debate sobre a obra Getúlio, de Lira Neto, merece um
esclarecimento.
As biografias irrompem nas listas
de mais vendidos, no Brasil e no mundo. Também as obras históricas de cunho
jornalístico, mas fiquemos com as biografias.
As biografias jornalísticas não
vieram da historiografia. Um Lira Neto é menos descendente intelectual de Capistrano
de Abreu que de Machado de Assis. As biografias jornalísticas vieram do
romance.
A modernidade impactou as artes
todas. O acaso da pintura com o advento do Impressionismo é paradigmático. As
artes passaram a questionar a sua própria linguagem. Com o romance não foi
diferente. O modernismo estilhaçou a narrativa, diluiu aquele personagem
central com o qual o leitor se identificava e minimizou a experiência vicária,
ou seja, a sensação de viver a vida, medos e desejos de outra pessoa.
A experiência vicária buscou refúgio
na biografia jornalística.
Os historiadores que criticam as biografias
jornalísticas fazem como um comentarista esportivo que criticasse Neymar por
não fazer um bom bloqueio na rede. Neymar não joga vôlei. Os jornalistas biógrafos
não se propõem a fazer historiografia. Escrevem sobre história, claro, como
qualquer pessoa pode. Mas seu propósito é primordialmente criar um personagem
com o qual o leitor se identifique, o qual conheça, com o qual sofra e deseje e
vença junto.
Lira Neto arriscou-se imensamente
ao biografar alguém cuja vida foi tão virada e revirada. Getúlio talvez cause um
fenômeno curioso que existe na aviação de guerra, chamado Fixação no Alvo
(Target fixation). Em condições de guerra, o piloto de caça pode ficar tão centrado
no alvo que pode acabar colidindo com ele. É preciso um companheiro que grite “Sai!”
e o piloto desvie o avião. Para escrever alguma novidade real sobre Getúlio
talvez o melhor fosse esquecer um pouco o próprio alvo Getúlio e se ficar nos
seus arredores.
As condições políticas e
econômicas da Campanha Gaúcha na época produziram Getúlio. Um imenso território
retalhado em latifúndios, cada qual propriedade de senhor que tinha sob seu
comando cavaleiros que pastoreavam gado. Os senhores vendiam o gado gordo
inicialmente para charqueadas e, no tempo de Getúlio, para frigoríficos
ingleses. Seus peões cavaleiros podiam rapidamente receber uma lança cada um e
ser transformados em soldados. E, a cada desavença séria entre os senhores do
gado, eles o eram. O Rio Grande sangrou em guerras entre esses exércitos de
lanceiros: em 1835-45 (a Revolução Farroupilha), em 1893-95 (a Revolução
Federalista), e em 1923.
Nesse último ano, os senhores de
terra e de lanceiros fizeram paz entre si. Uma paz difícil, mas paz. A partir
daquele momento, a política dos gaúchos pôde ascender nacionalmente. Uma circunstância
política e econômica produziu Getúlio. Mas por que então Getúlio chegou ao topo?
Por que não Assis Brasil, Borges de Medeiros, Flores da Cunha, Batista Luzardo,
Lindolfo Collor, Osvaldo Aranha, outros tantos políticos gaúchos mais ou menos
da mesma época, todos bastante sagazes? Aí a personalidade do homem faz diferença.
Por isso as biografias não são irrelevantes.
Não são irrelevantes, mas uma biografia
jornalística não tem o propósito de ser historiografia. Trata-se de outra gênero,
e deve ser julgada com regras de outra gênero de escrita.

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