.

.

terça-feira, 27 de novembro de 2012

A falsa originalidade do eu inexistente



Jorge Frederico Guilherme, bem, não se pode dizer que fosse um fadado ao sucesso. Aos catorze teve sua primeira (intensa e babosa) admiradora. Pena que fosse sua irmã. Aos vinte na faculdade não passava de mediano – só estudava o que queria, danassem-se os mestres e as notas. Aos trinta conseguiu uma péssima cadeira na faculdade, na qual recebia pelo número de alunos – e bem poucos aguentavam suas aulas. Tangido por um exército inimigo que invadiu sua cidade, em 1806 correu estufando os bolsos com os papéis de a Fenomenologia do Espírito, sua primeira e quase ilível obra.  Bem tarde, bem a resvalar na velhice veio a glória – reis, alunos e mulheres o babavam. Muito homenageado, pouco lido, menos ainda entendido mas com uma importância que evoluía ao quadrado da complexidade de suas ideias, agora ele não era nem Jorge, nem Frederico, nem Guilherme, mas o chamavam por seu sobrenome, Hegel.

Como disse um vídeo feito por alguém que não gostava dele (Hegel in 90 minutes), ele é um oceano. Muitos nele mergulharam. Alguns saíram nacionalistas empedernidos. Outros saíram marxistas revolucionários. Outros nunca saíram – esses são os hegelianos.
Hegel demoliu pirâmides aparentemente sólidas do pensamento. É o filósofo do self. Simplicidade em si: o ser humano tem autoconsciência, sabe que é, que existe e se vê como em um espelho. Esta consciência de si, no entanto, não se adquire na relação com os objetos. A relação com objetos tem um darker side: começa como desejo, a satisfação de necessidades. E o desejo destrói o objeto desejado. Exemplo mais tétrico: o menino quer o bolo, o menino come o bolo, o bolo não é mais. Exemplo menos tétrico: o bancário casa com a stripper e descobre que ela, de camisola branca sem as luzes e o pole dancing, não é ela. Ou é mais tétrico, talvez.

O self no entanto descobre que não é só – há outros selves. Pulo do gato hegeliano: é nessa relação entre selves que se dá a consciência de si. O self adquire sua consciência pela participação em um mundo público, ou no linguajar hegeliano, em um mundo espiritual. A comunicação não consiste em um processo psicológico, mas histórico e político. E mais que isso: o conceito supremo da filosofia hegeliana, o Espírito (Geist). Este é o rendez-vous dos selves, o seu encontro. Existe em comunidade. A consciência não é um processo solitário. Quando penso, penso com o outro, com minha época, com minhas circunstâncias e os programas Reality-show que vejo ou vomito. Isso tem permeado o pensamento há um bom par de séculos.

Esta descoberta empurrou a filosofia, a psicologia e práticas conexas a direções fascinantes que não cabe detalhar aqui. Mas o direito autoral namora o sentido oposto. O não-dito (que é mais forte que o dito) de certos discursos em favor da cobrança e patenteamento generalizados é a ideia do eu sozinho, frente ao objeto, criando a ideia, que é dele, só dele, e a ele cabe decidir o que fazer com ela. O eu que cria só. O eu (às vezes eufemizado como artista) do direito autoral não é um self imerso em sua época, nas ideias que recebeu e que socialmente as recombina. Ele é um criador, coisa que o self nunca é – este é um construtor social de consciência, a própria e por tabela a dos outros. Isso se revela nos discursos nos quais se fala de proteger o criador. Proteger do quê? Ato falho, esse discurso revela uma implícita oposição criador versus sociedade. Aquele tem sua propriedade, esta pode roubá-la, aquele nada deve a esta.

Filosofia não envolve tudo. Nem mesmo o começo. A economia, a prata no bolso, berra alto. Mas é interessante como a filosofia e os interesses seguem caminhos opostos. Para aquela, a de Hegel, que puxa o pensamento atual, o self não é eu porém nós, pensa com sua época e por isso pode ser relevante – ajudar a transformá-la. Para o direito autoral, há o eu que cria a partir de si mesmo, e a sociedade se plasma em um envoltório, às vezes hostil.

Bibliografia básica - recomendo baixar:
Hegel´s Aesthetics – Lectures on Fine Art - http://archive.org/details/HegelsAesthetics - Pesado e saboroso como feijoada;
Hegel´s Aesthetics: a critical exposition, by John Steinfort Kedney. - http://archive.org/details/hegelsaesthetics00kednuoft  - Boa introdução à obra acima. Só tem o problema de Mr. Kedney, entre colchetes, colocar sua opinião pessoal onde a mesma não é solicitada;
The Root of Humanity: Hegel on Language and Communication, by John Durham Peters. - http://ir.uiowa.edu/cgi/viewcontent.cgi?article=1012&context=commstud_pubs – Breve e bom estudo desse professor da Universidade de Iowa.
(Todos os direitos liberados. Mas quem colocar um link para o blog ganha um Pai-Nosso.)

2 comentários:

  1. Paulo, muito bom artigo! No final corrija versos por versus. Fiquei com vontade de voltar a Hegel que sempre me pareceu chato.
    Um abraço,
    Georges

    ResponderExcluir
  2. Grande Georges! Já corrigi o que o corretor de texto tinha descorrigido... E o homem é denso mesmo, bem filósofo alemão!
    Abraço,
    Paulo

    ResponderExcluir