A Epopeia de Gilgamesh apresenta logo no início um jogo de
duplicidades – o protagonista e nome da novela possui um alter ego. O régulo Gilgamesh é um homem de cidade – as cidades
sumérias do vale mesopotâmico. Seu oposto Enkidu nasceu no campo, atrapalha os
pastores, vive e fala com os animais. Vemos que a oposição civilização-natureza
atormentava escritores desde literalmente os primeiros escritos.
As mudanças de enfoque da obra
estilhaçam a narrativa em três: antes do encontro dos dois, depois do seu encontro,
e a narrativa de Utnapishtim, o longínquo.
Na primeira parte, Shamat a
sacerdotisa encontra Enkidu. Nada casual – Gilgamesh rei da cidade de Uruk a
designara para essa tarefa. A literatura antiga prima pelo explícito – nada a
ver com nossos tempos afinal pós-vitorianos. Shamat solta seu peito, expõe seu sexo, faz o homem tomá-la em sua
voluptuosidade, e não se contém mas absorve a energia dele – é o que
Gilgamesh ordenara, e é o que ela faz. Depois Enkidu não consegue mais falar
com os animais – não é mais um deles. Shamat o leva para a cidade, ensina-o a
comer pão e cerveja, não a carne dos animais arrancada a dentadas, como antes.
Shamat mulher o tornou humano.
Alguns dos momentos altos da
literatura vieram nos seus inícios. E Shamat é uma personagem feminina de não
pouco interesse. A maioria dos comentaristas afirma: é prostituição sagrada.
Isso havia muito, e as civilizações posteriores dominadas pelo judaísmo e seu
filhote cristão fizeram questão de esquecê-lo. As sacerdotisas amavam fisicamente
os peregrinos, por assim dizer. Era um ato de purificação. E assim o foi com
Shamat e Enkidu.
Ela pronuncia uma das frases mais
doces da literatura, Tu és belo, Enkidu,
tu te tornaste semelhante a um deus – isso depois de amá-lo fisicamente, o
que é lógico, pois antes ele não era deus senão bicho.
Os paralelos entre a Epopeia e a Bíblia são convidativos e um
deles é comparar Shamat a Eva. Não vejo: Eva causa a queda e Shamat a ascensão.
O ato físico envergonha a personagem bíblica – a feiticeira babilônica nem se
refere a ele depois – tão natural para ela, ser sacerdotisa e ser mulher.
Há uma ideia de que a literatura
antigamente era pudica. A Epopeia
mostra como isso é falso, com sua coadjuvante que não deixa de fascinar:
Shamat, completa e mulher.
Sigamos falando da Epopeia de
Gilgamesh.