.

.
Mostrando postagens com marcador Gilgamesh. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Gilgamesh. Mostrar todas as postagens

sexta-feira, 27 de abril de 2012

Apontamentos para uma impossível história do Caos - VI


Aquele-que-está-distante


Utnapishtim detona a narrativa da Epopeia de Gilgamesh principalmente na tabuinha XI. A Epopeia e parte das crenças bíblicas: uma busca pela Internet mostra discussões se Noé é na verdade um Utnapishtim requentado.

Utnapishtim vive na Boca-dos-rios. Vive longe – daí o apelido Aquele-que-está-distante. Gilgamesh o encontra, intenta lutar com ele mas o vê igual a si e seus braços quedam imóveis. Encontro nada casual – Gilgamesh, rei de Uruk, quer o não-morrer. Ouviu dizer que Utnapishtim, Aquele-que-está-distante, arrancou dos deuses a imortalidade. A tabuinha XI é a história de Utnapishtim.

Que semelha a de Noé. Ele recebe aviso dos deuses de que uma enchente reduzirá tudo a barro. Deve salvar a si e a poucos humanos e animais. Recebe instruções, constrói uma arca quadrada de sete andares – semelhante a um zigurate, um templo sumério que liga a terra ao céu. Ao final de dias de chuva solta vários pássaros, até que se convence de que é seguro sair. Os deuses conferem a ele a imortalidade, e ordenam a ele viver na Boca-dos-rios.

Utnapishtim indica a Gilgamesh como encontrar a planta da imortalidade. Este desce ao fundo do mar para encontrá-la, mas uma cobra a toma dele. Gilgamesh volta Uruk, da qual é rei, e reforça as muralhas da cidade – ou seja, decide ser o melhor rei possível enquanto vive.

Não se espere sofisticações literárias da Epopeia de Gilgamesh – a arte da escrita era ainda bebê, se tanto. Mas encerra lição – a importância da despreocupação com aléns – o que não significa que não existam, e a necessidade de se viver o já. Talvez seja esse o segredo de Utnapishtim, Aquele-que-está distante.

terça-feira, 24 de abril de 2012

Apontamentos para uma impossível história do Caos (5)




A Epopeia de Gilgamesh apresenta logo no início um jogo de duplicidades – o protagonista e nome da novela possui um alter ego. O régulo Gilgamesh é um homem de cidade – as cidades sumérias do vale mesopotâmico. Seu oposto Enkidu nasceu no campo, atrapalha os pastores, vive e fala com os animais. Vemos que a oposição civilização-natureza atormentava escritores desde literalmente os primeiros escritos.

As mudanças de enfoque da obra estilhaçam a narrativa em três: antes do encontro dos dois, depois do seu encontro, e a narrativa de Utnapishtim, o longínquo.

Na primeira parte, Shamat a sacerdotisa encontra Enkidu. Nada casual – Gilgamesh rei da cidade de Uruk a designara para essa tarefa. A literatura antiga prima pelo explícito – nada a ver com nossos tempos afinal pós-vitorianos. Shamat solta seu peito, expõe seu sexo, faz o homem tomá-la em sua voluptuosidade, e não se contém mas absorve a energia dele – é o que Gilgamesh ordenara, e é o que ela faz. Depois Enkidu não consegue mais falar com os animais – não é mais um deles. Shamat o leva para a cidade, ensina-o a comer pão e cerveja, não a carne dos animais arrancada a dentadas, como antes. Shamat mulher o tornou humano.

Alguns dos momentos altos da literatura vieram nos seus inícios. E Shamat é uma personagem feminina de não pouco interesse. A maioria dos comentaristas afirma: é prostituição sagrada. Isso havia muito, e as civilizações posteriores dominadas pelo judaísmo e seu filhote cristão fizeram questão de esquecê-lo. As sacerdotisas amavam fisicamente os peregrinos, por assim dizer. Era um ato de purificação. E assim o foi com Shamat e Enkidu.

Ela pronuncia uma das frases mais doces da literatura, Tu és belo, Enkidu, tu te tornaste semelhante a um deus – isso depois de amá-lo fisicamente, o que é lógico, pois antes ele não era deus senão bicho.
Os paralelos entre a Epopeia e a Bíblia são convidativos e um deles é comparar Shamat a Eva. Não vejo: Eva causa a queda e Shamat a ascensão. O ato físico envergonha a personagem bíblica – a feiticeira babilônica nem se refere a ele depois – tão natural para ela, ser sacerdotisa e ser mulher.

Há uma ideia de que a literatura antigamente era pudica. A Epopeia mostra como isso é falso, com sua coadjuvante que não deixa de fascinar: Shamat, completa e mulher.

Sigamos falando da Epopeia de Gilgamesh.

terça-feira, 13 de março de 2012

Apontamentos para uma impossível história do caos (4)



De Gilgamesh, herói babilônico (a)

Gilgamesh verdadeiramente existiu – é o que diz a unanimidade dos pesquisadores, incluídos aí os pressurosos organizadores que fizeram a seleção das obras para o The Harper Collins World Reader. Segundo eles, foi um rei de uma cidade chamada Uruk no tempo dos Sumérios, no território do atual Iraque. Viveu entre algo como 2800 e 2500 A.C., mas suas histórias só foram fixadas lá pelo ano 1200 A.C., quando – detalhe relevante – um outro ciclo de histórias foi incorporado ao seu, o de como quase toda a Humanidade pereceu em um dilúvio enviado pelos deuses, e só um homem e seus agregados sobreviveram. Qualquer coincidência com a Bíblia, dizem, não é mera semelhança.

Os sumérios construíram os zigurates, torres de sete andares - para a tecnologia da época, arranha-céus espantosos. Possuíam finalidade religiosa – o centro do zigurate era o centro do mundo, um lugar de quebra onde o Céu se encontra com a Terra. O mais famoso desses zigurates não é retratado muito favoravelmente – é a torre de Babel. Os hebreus, embora de ascendência mesopotâmica (Abrão nascera na cidade suméria de Ur), não iriam retratar bem o templo de uma crença que colidia com a deles. Os sumérios nunca construíram um império centralizado. Havia pequenas cidades, separadas por charcos e selvas às vezes perigosas – é o habitat do herói.

Um arqueólogo britânico em 1854 desenterrou tabuinhas – uma delas bastante quebrada nas pontas. Era o que ficou conhecido como o Épico de Gilgamesh, celebrado como a mais antiga obra literária ainda existente. De fato, o Enuma Elish é mais antigo. Significa Quando os Céus acima e trata da criação do mundo, a luta de um herói contra o dragão do Caos, e a instauração de um mundo organizado. O guerreiro Marduk vence a serpente Tiamat. Mas o Enuma Elish não possuía nem de longe finalidades entretenedoras. Os sacerdotes e príncipes o liam para o público na festa do Ano Novo e não era casual – a história justificava a sociedade babilônica, porque eles eram os melhores e porque as outras terras além das deles eram o Caos.

Uma sopa de histórias compõe o Gilgamesh, daí a sensação de uma narrativa algo quebrada – e não só pela falta de pedaços da tabuinha, apesar dos esforços de arqueólogos de completá-la com outras fontes. A partir do meio a história se define. O herói quer ser imortal. Para isso, literalmente corre atrás, além de mergulhar, como mostra a gravura. No final, não consegue, mas não fica de mãos vazias. Sigamos falando de Gilgamesh, herói babilônico.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Apontamentos para uma impossível história do caos (1)

Os céus acima

Uma história de caos é impossível para os homens e sua vaidade tola, mas os impossíveis aos homens são possíveis a Deus (Mt 19:26). No entanto, o propósito desta especulação pouco tema a ver com a heresia judaica, nas palavras de Borges. Os escritos mais próximos de uma história do caos são duas narrativas mesopotâmicas desconhecidas até que foram resgatadas em escavações no século XIX na antiga biblioteca de Nínive, nas margens do Tigre. (O rio em si é justificado pela história, como veremos.)

Das narrativas, a mais importante é a primeira e mais antiga. (A segunda, a Epopeia de Gilgamesh, trata de um homem que, embora deificado, traz à narrativa - assim como os homens sempre trazem a ela - um suave toque de inverossimilhança) A primeira, o Enuma Elish, é um conjunto de seis tábuas de argila. Embora não careça de certa elegância, e mesmo de sensação de suspense, seu propósito não poderia estar mais longe do entretenimento: lida durante o festival de ano novo, marcava o fim do no passado, ou do mundo passado ( os primitivos não faziam distinção entre um e outro) e começava um novo ano-mundo de homens renovados, mesmo que seus corpos fossem os mesmos.

Enuma Elish significa Quando os céus acima e sendo, como é, uma história de todos ou o começo de tudo, traz consigo uma possibilidade assustadora. Eu não falo do Terror da História que descreveu o romeno Mircea Eliade em seu lacônico ensaio O Mito do Eterno Retorno. Este último não é sobre o terror do caos (que é a não-história), mas da própria história, e esse terror começa precisamente quando o caos deixa de existir. O terror de que eu escrevo, e ao qual deram pouca importância não só o escritor romeno como o escritor bíblico e como Aristófanes (As Rãs), Platão (Timeu) e Aristóteles (Metafísica), é o terror das possibilidades, e da possível escolha do caos no lugar do cosmos. Ou seja, se o mundo não existisse.

segunda-feira, 6 de fevereiro de 2012

Gilgamesh, herói


Gilgamesh verdadeiramente existiu – é o que diz a unanimidade dos pesquisadores, incluídos aí os pressurosos organizadores que fizeram a seleção das obras para o The Harper Collins World Reader. Segundo eles, foi um rei de uma cidade chamada Uruk no tempo dos Sumérios, no território do atual Iraque. Viveu entre algo como 2800 e 2500 A.C., mas suas histórias só foram fixadas lá pelo ano 1200 A.C., quando – detalhe relevante – um outro ciclo de histórias foi incorporado ao seu, o de como quase toda a Humanidade pereceu em um dilúvio enviado pelos deuses, e só um homem e seus agregados sobreviveram. Qualquer coincidência com a Bíblia, dizem, não é mera semelhança.

Os sumérios construíram os zigurates, torres de sete andares - para a tecnologia da época, arranha-céus espantosos. Possuíam finalidade religiosa – o centro do zigurate era o centro do mundo, um lugar de quebra onde o Céu se encontra com a Terra. O mais famoso desses zigurates não é retratado muito favoravelmente – é a torre de Babel. Os hebreus, embora de ascendência mesopotâmica (Abrão nascera na cidade suméria de Ur), não iriam retratar bem o templo de uma crença que colidia com a deles. Os sumérios nunca construíram um império centralizado. Havia pequenas cidades, separadas por charcos e selvas às vezes perigosas – é o habitat do herói.

Um arqueólogo britânico em 1854 desenterrou tabuinhas – uma delas bastante quebrada nas pontas. Era o que ficou conhecido como o Épico de Gilgamesh, celebrado como a mais antiga obra literária ainda existente. De fato, o Enuma Elish é mais antigo. Significa Quando os Céus acima e trata da criação do mundo, a luta de um herói contra o dragão do caos, e a instauração de um mundo organizado. O guerreiro Marduk vence a serpente Tiamat. Mas o Enuma Elish não possuía nem de longe finalidades entretenedoras. Os sacerdotes e príncipes o liam para o público na festa do Ano Novo e não era casual – a história justificava a sociedade babilônica, porque eles eram os melhores e porque as outras terras além das deles eram o caos.

Uma sopa de histórias compõe o Gilgamesh, daí a sensação de uma narrativa algo quebrada – e não só pela falta de pedaços da tabuinha, apesar dos esforços de arqueólogos de completá-la com outras fontes. A partir do meio a história se define. O herói quer ser imortal. Para isso, literalmente corre atrás, além de mergulhar, como mostra a gravura. No final, não consegue, mas não fica de mãos vazias. Sigamos falando de Gilgamesh, herói babilônico.