Mircea Eliade talvez com
excessivo ufanismo cristão no seu O Mito
do Eterno Retorno afirma repetidas vezes até à náusea que à doutrina do
nazareno cabe o mérito de historicizar o homem. Depois dela, o mundo tornou-se
linha composta de passado, presente e futuro preenchida por acontecimentos
irrepetíveis. Tal triunfalismo religioso é compreensível em quem pensou em ser
monge ortodoxo.
Essa nova ideia teria jogado para
um suave escanteio a outra noção – o mundo como uma sucessão literalmente sem
fim de acontecimentos que decalcam outra série de acontecimentos que não se deu
na linha passado-presente-futuro, mas em um outro tempo – um tempo que denomina
de mítico, e não sem algum pedantismo de in
illo tempore. Neste tempo fora do tempo, um acontecimento recorre – a
vitória de algum semideus sobre o Caos – este quase sempre personificado como
dragão, mulher e vivendo na água.
A Bíblia desprezou tal visão. Mas
não de todo – o Caos é presente, principalmente na narrativa bíblica mais
antiga.
A Bíblia de Jerusalém traduz o primeiro versículo como No princípio, Deus criou o céu e a terra. E
na coluna de observações pressurosamente ajunta uma declaração que semelha
xerocópia de Eliade: a criação não é um
mito atemporal, ela é integrada à história da qual ela é o início absoluto. O
segundo versículo afirma que A terra
estava vazia e vaga, e a coluna de observações permite imaginar a seguinte
semitradução possível, A terra era tohû e
bohû, o deserto e o vazio.
Vazio sem vazio, três elementos o
preenchem – e complicam a análise do biblista de Jerusalém. E um sopro de Deus agitava a superfície das águas.
Seguindo as observações, a água, junto
com tohû e bohû, compõe uma trindade negativa. Um sopro de Deus, a palavra ruah
que também se pode traduzir por grande
vento. A terceira complicação passou despercebida ao editor e se encontra
no meio do versículo dois, as trevas
cobriam o abismo. A presença das trevas é óbvia – visa a contrastar com um
Deus de luz.
A metáfora da luz criou história
– Dante, no anticlimático e até certo ponto decepcionante (porque rápido
demais) centésimo e último canto da Divina Comédia identifica Deus com a luz.
Nisso o talvez falso porém sempre inserido na história início do mundo pela
crença judaica difere dos inícios dos povos assim chamados primitivos, para os
quais a luz existia antes – na verdade tudo existia, apenas misturado.
Luminosidade e escuro, afirmação e negação juntos. Um resquício disso se
encontra nos versículos três e quatro, quando Deus não só cria a luz como a
separa do que existia antes, as trevas.
Mas o verdadeiro problema está na
palavra abismo. O biblista de
Jerusalém a ele não se referiu em seus comentários. Não podia haver abismos
onde não havia nada. Podemos entender o abismo de maneira psicologizante –
abismo, medo, vertigem, redemoinho na mente. De novo a mistura, o Caos dos
primitivos recorrendo.
A Bíblia do Peregrino simplifica talvez em excesso o começo do
versículo dois (A terra era um Caos
informe em vez do já visto A terra
estava vazia e vaga), e torna bem mais próximo das concepções primitivas e
mais especificamente mesopotâmicas de criação de tudo. Caos informe era o que
existia antes do herói Marduk vencer o Caos em luta e transformá-lo em Cosmos.
O próprio comentarista obviamente cristão parece aderir a esse ponto de vista
ao se referir ao alento de Deus, que
incuba e transforma o Caos em cosmo.
A Bíblia Sagrada da editora Vozes tem um delicioso sabor político – o
cardeal da libertação Dom Paulo Evaristo Arns concedeu a ela o imprimatur. Não difere muito da Bíblia
de Jerusalém na tradução mas ajunta pressurosamente uma nota: Diversamente das cosmogonias antigas, a
criação não resulta de uma luta com o Caos mas do poder transcendente de Deus
que cria com uma simples palavra. O que talvez seja uma forma simples me
excesso para negar os óbvios resquícios que o pensamento cosmogônico antigo
deixou na primeiras livros do sagrado livro. Eliade o reputa histórico por
excelência. Mas o Caos primevo, ponto inicial do pensamento cíclico e
a-histórico, nele se faz presente.
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