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quinta-feira, 3 de maio de 2012

Apontamentos para uma impossível história do Caos - VII


O Caos na Bíblia

Mircea Eliade talvez com excessivo ufanismo cristão no seu O Mito do Eterno Retorno afirma repetidas vezes até à náusea que à doutrina do nazareno cabe o mérito de historicizar o homem. Depois dela, o mundo tornou-se linha composta de passado, presente e futuro preenchida por acontecimentos irrepetíveis. Tal triunfalismo religioso é compreensível em quem pensou em ser monge ortodoxo.

Essa nova ideia teria jogado para um suave escanteio a outra noção – o mundo como uma sucessão literalmente sem fim de acontecimentos que decalcam outra série de acontecimentos que não se deu na linha passado-presente-futuro, mas em um outro tempo – um tempo que denomina de mítico, e não sem algum pedantismo de in illo tempore. Neste tempo fora do tempo, um acontecimento recorre – a vitória de algum semideus sobre o Caos – este quase sempre personificado como dragão, mulher e vivendo na água.

A Bíblia desprezou tal visão. Mas não de todo – o Caos é presente, principalmente na narrativa bíblica mais antiga.

A Bíblia de Jerusalém traduz o primeiro versículo como No princípio, Deus criou o céu e a terra. E na coluna de observações pressurosamente ajunta uma declaração que semelha xerocópia de Eliade: a criação não é um mito atemporal, ela é integrada à história da qual ela é o início absoluto. O segundo versículo afirma que A terra estava vazia e vaga, e a coluna de observações permite imaginar a seguinte semitradução possível, A terra era tohû e bohû, o deserto e o vazio.

Vazio sem vazio, três elementos o preenchem – e complicam a análise do biblista de Jerusalém. E um sopro de Deus agitava a superfície das águas. Seguindo as observações, a  água, junto com tohû e bohû, compõe uma trindade negativa. Um sopro de Deus, a palavra ruah que também se pode traduzir por grande vento. A terceira complicação passou despercebida ao editor e se encontra no meio do versículo dois, as trevas cobriam o abismo. A presença das trevas é óbvia – visa a contrastar com um Deus de luz.
A metáfora da luz criou história – Dante, no anticlimático e até certo ponto decepcionante (porque rápido demais) centésimo e último canto da Divina Comédia identifica Deus com a luz. Nisso o talvez falso porém sempre inserido na história início do mundo pela crença judaica difere dos inícios dos povos assim chamados primitivos, para os quais a luz existia antes – na verdade tudo existia, apenas misturado. Luminosidade e escuro, afirmação e negação juntos. Um resquício disso se encontra nos versículos três e quatro, quando Deus não só cria a luz como a separa do que existia antes, as trevas.

Mas o verdadeiro problema está na palavra abismo. O biblista de Jerusalém a ele não se referiu em seus comentários. Não podia haver abismos onde não havia nada. Podemos entender o abismo de maneira psicologizante – abismo, medo, vertigem, redemoinho na mente. De novo a mistura, o Caos dos primitivos recorrendo.

A Bíblia do Peregrino simplifica talvez em excesso o começo do versículo dois (A terra era um Caos informe em vez do já visto A terra estava vazia e vaga), e torna bem mais próximo das concepções primitivas e mais especificamente mesopotâmicas de criação de tudo. Caos informe era o que existia antes do herói Marduk vencer o Caos em luta e transformá-lo em Cosmos. O próprio comentarista obviamente cristão parece aderir a esse ponto de vista ao se referir ao alento de Deus, que incuba e transforma o Caos em cosmo.

A Bíblia Sagrada da editora Vozes tem um delicioso sabor político – o cardeal da libertação Dom Paulo Evaristo Arns concedeu a ela o imprimatur. Não difere muito da Bíblia de Jerusalém na tradução mas ajunta pressurosamente uma nota: Diversamente das cosmogonias antigas, a criação não resulta de uma luta com o Caos mas do poder transcendente de Deus que cria com uma simples palavra. O que talvez seja uma forma simples me excesso para negar os óbvios resquícios que o pensamento cosmogônico antigo deixou na primeiras livros do sagrado livro. Eliade o reputa histórico por excelência. Mas o Caos primevo, ponto inicial do pensamento cíclico e a-histórico, nele se faz presente.

terça-feira, 13 de março de 2012

Apontamentos para uma impossível história do caos (4)



De Gilgamesh, herói babilônico (a)

Gilgamesh verdadeiramente existiu – é o que diz a unanimidade dos pesquisadores, incluídos aí os pressurosos organizadores que fizeram a seleção das obras para o The Harper Collins World Reader. Segundo eles, foi um rei de uma cidade chamada Uruk no tempo dos Sumérios, no território do atual Iraque. Viveu entre algo como 2800 e 2500 A.C., mas suas histórias só foram fixadas lá pelo ano 1200 A.C., quando – detalhe relevante – um outro ciclo de histórias foi incorporado ao seu, o de como quase toda a Humanidade pereceu em um dilúvio enviado pelos deuses, e só um homem e seus agregados sobreviveram. Qualquer coincidência com a Bíblia, dizem, não é mera semelhança.

Os sumérios construíram os zigurates, torres de sete andares - para a tecnologia da época, arranha-céus espantosos. Possuíam finalidade religiosa – o centro do zigurate era o centro do mundo, um lugar de quebra onde o Céu se encontra com a Terra. O mais famoso desses zigurates não é retratado muito favoravelmente – é a torre de Babel. Os hebreus, embora de ascendência mesopotâmica (Abrão nascera na cidade suméria de Ur), não iriam retratar bem o templo de uma crença que colidia com a deles. Os sumérios nunca construíram um império centralizado. Havia pequenas cidades, separadas por charcos e selvas às vezes perigosas – é o habitat do herói.

Um arqueólogo britânico em 1854 desenterrou tabuinhas – uma delas bastante quebrada nas pontas. Era o que ficou conhecido como o Épico de Gilgamesh, celebrado como a mais antiga obra literária ainda existente. De fato, o Enuma Elish é mais antigo. Significa Quando os Céus acima e trata da criação do mundo, a luta de um herói contra o dragão do Caos, e a instauração de um mundo organizado. O guerreiro Marduk vence a serpente Tiamat. Mas o Enuma Elish não possuía nem de longe finalidades entretenedoras. Os sacerdotes e príncipes o liam para o público na festa do Ano Novo e não era casual – a história justificava a sociedade babilônica, porque eles eram os melhores e porque as outras terras além das deles eram o Caos.

Uma sopa de histórias compõe o Gilgamesh, daí a sensação de uma narrativa algo quebrada – e não só pela falta de pedaços da tabuinha, apesar dos esforços de arqueólogos de completá-la com outras fontes. A partir do meio a história se define. O herói quer ser imortal. Para isso, literalmente corre atrás, além de mergulhar, como mostra a gravura. No final, não consegue, mas não fica de mãos vazias. Sigamos falando de Gilgamesh, herói babilônico.

terça-feira, 21 de fevereiro de 2012

Apontamentos para uma impossível história do caos (1)

Os céus acima

Uma história de caos é impossível para os homens e sua vaidade tola, mas os impossíveis aos homens são possíveis a Deus (Mt 19:26). No entanto, o propósito desta especulação pouco tema a ver com a heresia judaica, nas palavras de Borges. Os escritos mais próximos de uma história do caos são duas narrativas mesopotâmicas desconhecidas até que foram resgatadas em escavações no século XIX na antiga biblioteca de Nínive, nas margens do Tigre. (O rio em si é justificado pela história, como veremos.)

Das narrativas, a mais importante é a primeira e mais antiga. (A segunda, a Epopeia de Gilgamesh, trata de um homem que, embora deificado, traz à narrativa - assim como os homens sempre trazem a ela - um suave toque de inverossimilhança) A primeira, o Enuma Elish, é um conjunto de seis tábuas de argila. Embora não careça de certa elegância, e mesmo de sensação de suspense, seu propósito não poderia estar mais longe do entretenimento: lida durante o festival de ano novo, marcava o fim do no passado, ou do mundo passado ( os primitivos não faziam distinção entre um e outro) e começava um novo ano-mundo de homens renovados, mesmo que seus corpos fossem os mesmos.

Enuma Elish significa Quando os céus acima e sendo, como é, uma história de todos ou o começo de tudo, traz consigo uma possibilidade assustadora. Eu não falo do Terror da História que descreveu o romeno Mircea Eliade em seu lacônico ensaio O Mito do Eterno Retorno. Este último não é sobre o terror do caos (que é a não-história), mas da própria história, e esse terror começa precisamente quando o caos deixa de existir. O terror de que eu escrevo, e ao qual deram pouca importância não só o escritor romeno como o escritor bíblico e como Aristófanes (As Rãs), Platão (Timeu) e Aristóteles (Metafísica), é o terror das possibilidades, e da possível escolha do caos no lugar do cosmos. Ou seja, se o mundo não existisse.