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terça-feira, 22 de maio de 2012

Apontamentos para uma impossível história do Caos - X (e último)



O Caos em Milton, e o fim

O editor do Syntopicon da Great Books of the Western World, 1a edição, sinalizou que Milton escreveu brevemente sobre o Caos nas páginas 129 a 133, do volume 32, que correspondem ao final do Livro II do Paraíso Perdido. Satã viaja. Estava preso no Hades, onde fora jogado com seus aliados após a derrota na luta pelo poder total. Foge ao cooptar um carcereiro. À sua frente entre o Inferno e a recém-criada Terra abre-se um buraco. Enorme, por certo, escuro. É o reino do Caos, onde o Acaso reina, junto à eterna Anarquia, e onde não há margem, mar, ar nem fogo, mas todos eles em suas causas primordiais, e misturados.  Em uma frase estupenda, afirma que esse Abismo é o ventre da natureza e talvez seu túmulo, antecipando os riscos da superpoluição e do aquecimento global.

Milton segue com rigor as tradições de Caos sumérias e primitivas em geral – antes do mundo, o mundo existia mas em mistura. Sua novidade consiste não em pregar o Caos na parede de um passado in illo tempore mas em colocá-lo como um mundo paralelo a outros mundos, nomeadamente o Céu, o Inferno e a Terra. Enquanto escrevo isso, o Caos existe, e me (e te) espreita.

Em Dante não há Caos. Podemos colocá-lo em paralelo com o inglês: o assunto é o mesmo, diferenciam-se as visões católica e protestante. No florentino há três mundos, o Céu, Purgatório e Paraíso, além da Terra. Em nenhum existe Caos. Até o Inferno se organiza em rigorosas camadas com punições e punidores próprios. O Caos foi expulso.

E chegamos ao fim de nossa mini-exposição sobre o Caos. Poucas conclusões, como é lógico. Não há uma história do Caos. História é ordem e sequencialidade. Na mistura, isso inexiste. É interessante e pouco tranquilizador saber que a noção de Caos se esgueira até hoje pelas beiradas da nossa cultura ocidental. 

terça-feira, 13 de março de 2012

Apontamentos para uma impossível história do caos (4)



De Gilgamesh, herói babilônico (a)

Gilgamesh verdadeiramente existiu – é o que diz a unanimidade dos pesquisadores, incluídos aí os pressurosos organizadores que fizeram a seleção das obras para o The Harper Collins World Reader. Segundo eles, foi um rei de uma cidade chamada Uruk no tempo dos Sumérios, no território do atual Iraque. Viveu entre algo como 2800 e 2500 A.C., mas suas histórias só foram fixadas lá pelo ano 1200 A.C., quando – detalhe relevante – um outro ciclo de histórias foi incorporado ao seu, o de como quase toda a Humanidade pereceu em um dilúvio enviado pelos deuses, e só um homem e seus agregados sobreviveram. Qualquer coincidência com a Bíblia, dizem, não é mera semelhança.

Os sumérios construíram os zigurates, torres de sete andares - para a tecnologia da época, arranha-céus espantosos. Possuíam finalidade religiosa – o centro do zigurate era o centro do mundo, um lugar de quebra onde o Céu se encontra com a Terra. O mais famoso desses zigurates não é retratado muito favoravelmente – é a torre de Babel. Os hebreus, embora de ascendência mesopotâmica (Abrão nascera na cidade suméria de Ur), não iriam retratar bem o templo de uma crença que colidia com a deles. Os sumérios nunca construíram um império centralizado. Havia pequenas cidades, separadas por charcos e selvas às vezes perigosas – é o habitat do herói.

Um arqueólogo britânico em 1854 desenterrou tabuinhas – uma delas bastante quebrada nas pontas. Era o que ficou conhecido como o Épico de Gilgamesh, celebrado como a mais antiga obra literária ainda existente. De fato, o Enuma Elish é mais antigo. Significa Quando os Céus acima e trata da criação do mundo, a luta de um herói contra o dragão do Caos, e a instauração de um mundo organizado. O guerreiro Marduk vence a serpente Tiamat. Mas o Enuma Elish não possuía nem de longe finalidades entretenedoras. Os sacerdotes e príncipes o liam para o público na festa do Ano Novo e não era casual – a história justificava a sociedade babilônica, porque eles eram os melhores e porque as outras terras além das deles eram o Caos.

Uma sopa de histórias compõe o Gilgamesh, daí a sensação de uma narrativa algo quebrada – e não só pela falta de pedaços da tabuinha, apesar dos esforços de arqueólogos de completá-la com outras fontes. A partir do meio a história se define. O herói quer ser imortal. Para isso, literalmente corre atrás, além de mergulhar, como mostra a gravura. No final, não consegue, mas não fica de mãos vazias. Sigamos falando de Gilgamesh, herói babilônico.