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quarta-feira, 13 de agosto de 2014

014 - Polis não beija Juris: o caso da escolha dos ministros do Tribunal de Contas da União

Periodicamente surgem os inevitáveis debates quanto à nomeação de um novo Ministro no Tribunal de Contas da União.

Certo político, digamos, é candidato. Rapidamente os meios de comunicação informam que ele responde a vários inquéritos ou processos referentes a probidade administrativa.

A Tese

Uma corrente de pensamento afirma que não há como se opor à tal nomeação, pois tais processos ainda não teriam transitado em julgado, e, pelo princípio da presunção da inocência, nada se pode afirmar quanto à adequabilidade do possível candidato.

Pretendemos discutir essa tese. Um nome pode ajudar. Na verdade vários nomes de um circunspecto senhor: o primeiro era George, o segundo Frederico, o terceiro Guilherme mas apesar de seus belos nomes ficou conhecido por seu sobrenome, Hegel.

Falam os filósofos

O Princípio da Correção se transforma, na Sociedade Civil, em Lei – disse Herr Hegel na página 72 de sua Filosofia do Direito. O Conceito de Correção é particular e natural – e reside no caroço do sistema filosófico hegeliano. Metamorfoseia-se em Direito – erga omnes ­– que pode ser brandido individualmente por ser a Correção corporificada.

Celso Antônio Bandeira de Mello sintetiza o Estado de Direito como um projeto de contenção do Poder e de proclamação da igualdade de todos os homens (Curso de Direito Administrativo - p. 48). Instrumentos como o Direito Adquirido e a Coisa Julgada visam a limitar este Poder, impedindo-o de se intrometer em certas áreas do direito de cada um.

Da junção do clássico alemão e do clássico moderno brasileiro decorre que o Direito, incluindo o Direito Adquirido, protege, obviamente, Direitos – entendidos como bens ou comportamentos protegidos erga omnes por lei. Isso constitui a essência do Juris.

Lembremos agora o Cidadão de Genebra: sai o sério metafísico germânico e entra o folgazão (e inteligentíssimo) Jean-Jacques Rousseau. Na seção dezessete do capítulo três do seu Contrato Social determina que deve haver um governo – e isto é lei. Em seguida, o povo nomeia os governantes – e isto não é lei.

Não é erga omnes, não pode ser alegado como Direito – e obviamente não pode ser protegido como Direito Adquirido. Pertence a um outro domínio, o da Polis – o dos homens (nascidos livres) e unidos em Contrato para defender a coesão da sociedade e manutenção de seus Direitos e de sua Liberdade. Daí o nome do clássico livro.

Juris

A tese que discutimos considera que um cidadão não pode ser esbulhado de seu direito de ser nomeado Ministro do Tribunal de Contas da União, senão em virtude de sentença transitada em julgado. Raciocinemos ao inverso: se algo só pode ser retirado em virtude de sentença judicial, esse algo só pode ser um direito protegido por lei. Mais importante ainda: trata-se de Direito Adquirido, já que a referida nomeação ainda não tinha ocorrido.

A origem de tal “direito adquirido” (sendo aqui importante o uso de aspas) só pode ser a indicação, que em geral se dá por parte de um parlamentar. Ou seja, segundo a tese em questão, o ato indicativo é gerador de Direito Adquirido, no caso, o Direito a ser nomeado Ministro. É o que decorre da lógica do raciocínio.
Na última nomeação para Ministro do TCU, três candidatos foram indicados. E obviamente só um foi nomeado. Dois foram indicados e não foram nomeados, e não cabe ação judicial no sentido de forçar sua nomeação. Logo, o ato indicativo NÃO é gerador de direito adquirido.

Polis

A indicação, a negociação, a sabatina, o debate público – tudo isso não pertence ao domínio do Juris, mas ao da Polis. Este é o domínio não da proteção de direitos mas da definição de rumos – discutidos pelos cidadãos. E a Polis de certa forma ultrapassa Juris – estabelecendo requisitos que vão além do mero direito.

Um exemplo poderá esclarecer. Digamos que, em dado momento, todos os Ministros do TCU sejam oriundos do mesmo estado da Federação. Surge uma vaga. Indica-se um substituto – também daquele estado. Um movimento de cidadãos se insurge contra isso, afirmando que é necessário que haja um mínimo de equilíbrio federativo na Corte de Contas. Juris nada tem a dizer quanto a isso – a lei nada estabelece no tocante à naturalidade dos ministros. Mas do ponto de vista da Polis, tem sentido a argumentação do suposto movimento.

Pode-se argumentar que, se Juris não exige, a Polis não pode exigir. Isso equivale a dizer que os cidadãos não têm o direito de discutir os rumos do seu Estado, aí incluídas as nomeações políticas para cargos importantes. Tal seria a negação do princípio democrático.

O caminho das Entidades de Classe

Assim, Polis não beija Juris: a discussão política da nomeação de um candidato a Ministro do TCU se coloca no ramo da Polis, e esta consiste em uma esfera distinta da esfera da Juris.

Não se pode afirmar que esta tenha sido a tese que iluminou a atitude da AUDITAR em recente episódio de uma indicação a uma vaga de Ministro do TCU. Os documentos da entidade não permitem definição.

Mas os ilustres mestres da noção republicana acima citados nos permitem deixar claro que é plenamente possível lutar, por todos os meios políticos lícitos, contra a nomeação de um candidato cuja reputação seja maculada por suspeitas de improbidade.

Confiamos que a AUDITAR, assim como todas as entidades de classe dos funcionários de todas as Cortes de Contas, tomem, de agora em diante, posição firme e sem reservas contra a nomeação de tais candidatos, afirmando isso de maneira direta e sem subterfúgios.

Hegel, Rousseau e todos os que fundaram o Princípio Republicano agradecem.

quarta-feira, 23 de julho de 2014

013 – Controle Administrativo sobre o Futebol

O Senador Álvaro Dias propõe que a Confederação Brasileira de Futebol – CBF seja fiscalizada pelo Tribunal de Contas da União. Assim como as federações estaduais o sejam pelos tribunais de contas dos estados.

A oportunidade não podia ser melhor: protocolou o projeto de lei n. 221/2014 seis dias após a maior derrota da história do futebol brasileiro, de sete a um para a Alemanha, em uma Copa do Mundo, jogando em casa.

A Justificação do Projeto afirma que A trajetória de declínio do futebol brasileiro já foi anunciada há bastante tempo. Lembra também a importância econômica de tal esporte, e que consiste em patrimônio cultural do Brasil.

Pode-se intuir grande resistência. Tal rendoso esporte se encontra sob o controle de grupos que possuem um entendimento duplo: afirmam-se ser entes privados no tocante a fiscalizações, o que não impede de implicarem a gestão de volumosos recursos e interesses públicos, haja vista uma Copa de muitos bilhões.

Não se trata se proposição inédita. O Conselho de Estado francês julga as federações esportivas. A justificação é significativa: mais do que por mero aporte de recursos, estas são julgadas por serem pessoas privadas encarregadas de um serviço público. Esta talvez seja a melhor aproximação ao problema: não se reduzir a mera fiscalização de recursos, mas reconhecer que tal esporte envolve o interesse nacional, e portanto não pode ser deixado ao talante de um órgão privado.

Aguardemos a inevitável polêmica.


segunda-feira, 21 de julho de 2014

012 – Louis Antoine Macarel, o primeiro autor de Direito Administrativo

Uma trinca de franceses fundou o que chamamos de Direito Administrativo. Joseph Marie de Gérando, Louis-Marie de La Haye de Cormenin e Louis Antoine Macarel foram os primeiros mistos de juristas e funcionários públicos a procurarem dar um sentido às decisões que o Conselho de Estado francês produzia desde 1799. Um par de décadas depois estas decisões já se constituíam avalanche. E em 1818 Macarel escreveu os Elementos de Jurisprudência Administrativa, a primeira obra dedicada ao saber administrativista.

Trata-se na verdade de uma compilação dos julgados do Conselho de Estado, da mesma forma que o seriam o Recueil des arrets du Conseil, ou ordonnances royales, rendus en Conseil d´État, sur toutes les matières du contentieux de l´administration, publicada pelo mesmo autor dez anos após a primeira.

A forma de tais decisões (os arrets) se mantém a mesma até hoje. Eles tomam a forma interrogativa. O Conselho deve então responder à pergunta. Veja-se por exemplo a decisão relatada a partir da página 4 do Recueil: as Comunas são ainda devedoras dos débitos por elas contraídos antes da lei de 24 de agosto de 1793? A resposta, dada em julgamento de 1821, foi negativa.

Nascido em 1795, colaborou por muitos anos com os outros membros da trinca e sucedeu a Gérando como professor da cadeira de Direito Administrativo em 1842. Membro do Conselho de Estado, o discreto burocrata e jurista Louis Antoine Macarel faleceu em 1849, com a glória de ter ajudado a criar um novo ramo do Direito.


sexta-feira, 18 de julho de 2014

011 – Arqueologia do Direito Administrativo – o Decreto de 16 Frutidor

Um conjunto de leis criou o Direito Administrativo. Se quisermos ser dramáticos, diremos: o Acaso o criou. Surgiu de condições particulares da política francesa dos últimos vinte anos do século XVIII. Não veio do nada: a doutrina da separação de poderes já maturava desde princípios daquele século.

Os homens que lideravam o que logo depois se chamou de Revolução Francesa acreditavam no progresso. O velho Regime dos Luíses possuía um tribunal (ainda não extinto) com poderes para registrar ou não os atos legais. O Parlamento de Paris era um tribunal mas sua atribuição de registro o fazia ter um papel ativo dentro da política do executivo.

O novo poder da Assembleia Nacional revolucionária temia que o Parlamento de Paris utilizasse seu poder para simplesmente barrar todas as normas mudancistas. Agiu para evitar isso. A Lei de Organização Judiciária de 16-24 de agosto de 1790, no seu artigo 13, separava as funções administrativas das judiciárias.

Esta medida não pareceu suficiente e a Convenção Nacional a 2 de setembro de 1795 aprovou o Decreto do 16 Frutidor ano III, que proibia aos tribunais de conhecer os atos da administração, incluindo objetos confiscados e imposição de taxas revolucionárias.

O executivo quedou portanto, sem controle. Posteriormente, para fazer ressurgir esse controle, e fora da esfera judiciária, criou-se um novo ramo do saber jurídico.

Tais medidas legais não criaram o Direito Administrativo: elas fizeram surgir um vazio jurídico que foi preenchido por ele.


quarta-feira, 16 de julho de 2014

010 – O Conselho de Estado resolve sobre obras tomadas pelos nazistas

O Conselho de Estado francês trabalha dividido em seções. Somente nas questões mais complexas seus membros se reúnem na Assembleia do Contencioso, que constitui a instância mais alta da Justiça Administrativa francesa.

Durante a Segunda Guerra Mundial a potência nazista tomou várias obras de arte e as levou para Alemanha e Áustria. Tais obras foram recuperadas pelas tropas aliadas na medida em que avançavam, e foram objeto de uma legislação especial, a qual determinou seu recolhimento a museus nacionais de recuperação – tanto aquelas tomadas diretamente como aquelas objeto de venda forçada.

Duas senhoras austríacas alegam que três obras de arte que hoje constam desses museus são de sua propriedade, tendo sido adquiridas durante a guerra. Observe-se que não se conhece como se deu a perda dessas obras por seus antigos proprietários. O Ministro das Relações Exteriores (em 2004) negou a pretensão das duas requerentes. Elas apelaram ao Tribunal Administrativo de Paris, que em 2007 negou seu pedido. No mesmo sentido contrário às senhoras decidiu a Corte Administrativa de Apelação em Paris, em 2011.

Elas então apelaram novamente colocando as questões de, em primeiro lugar, se a Justiça Administrativa é competente para resolver tal questão, e em caso positivo, de decidir da legalidade da decisão do Ministro que começou todo o processo. É o problema que hoje, dia 16/07/2014, a Assembleia do Contencioso do Conselho de Estado decide definitivamente, em sessão pública.


quinta-feira, 3 de julho de 2014

008 – Barão de Gérando, o primeiro administrativista

Ele pode não ser o primeiro estudioso do Direito Administrativo. [Os historiadores o incluem numa trinca de pioneiros junto com Macarel e Cormenin]. Mas é o mais charmoso deles.

O Iluminismo e a Revolução Francesa geraram monsieur Joseph-Marie de Gérando. O primeiro professor de Direito Administrativo nasceu em 1772 em Lyon [como mais outro bom fruto daquela urbe, além de sua tranquilidade e sua esquisita culinária]. Teve muitos interesses na vida e o primeiro não foi a ciência jurídica. Oficial no exército revolucionário, retornou para estudar em Paris, tornando-se depois administrador na sua cidade natal.

Interessou-se por antropologia e por trabalhos de caridade, e não de maneira segregada. Era membro da Sociedade dos Observadores do Homem, que propugnava a observação participante das populações, e publicou o livro O Visitador do Pobre. Para Gérando, a filantropia é uma ciência empírica que inclui a investigação.

Homem da Era Napoleônica, trabalhou no Ministério do Interior e ajudou a introduzir a administração francesa na Itália ocupada. Em 1811 ingressou no Conselho de Estado francês.

Este órgão recente acumulava seus julgados, sem consciência de que criava um novo ramo do saber jurídico. Em 1819 foi chamado a ocupar a primeira cadeira de Direito Administrativo no mundo. Publicou depois os Institutos do Direito Administrativo Francês. Faleceu em 1842.

O Barão de Gérando constitui um exemplo de conhecimento e visão amplas, que oxalá ilumine todos os administradores públicos.

quarta-feira, 2 de julho de 2014

007 – Arqueologia do Direito Administrativo: o Decreto de 1790

Uma proibição criou o Direito Administrativo. Surgiu da circunstância política do Estado francês na Revolução, após 1789.

Os revolucionários queriam [ou foram forçados a] mudar o mundo de ponta-cabeça. Reivindicações populares que se acumulam havia décadas pressionavam por transformações, na vida e nas leis.

Um problema os desafiava.

O Antigo Regime Monárquico possuía certos órgãos, os Parlamentos. O principal, óbvio, era o Parlamento de Paris. Tratava-se de um tribunal, apesar do nome. Mas um tribunal muito especial. Uma complicada evolução de cinco ou mais séculos dera a tal Corte o direito consuetudinário de registrar os não os atos reais. Se o Parlamento se recusasse a registrar a norma, esta não valeria.

Pior, no reino de Luís XVI o parlamento virtualmente bloqueara as tímidas tentativas de reforma do Rei, recusando o registro a várias leis inovadoras.

A Assembleia revolucionária sabia que suas medidas seriam recusadas por este Tribunal com poderes legislativos. Por decreto de 16 agosto de 1790 ela estabeleceu que As funções judiciárias são distintas e permanecerão sempre separadas das funções administrativas. Mais adiante, o mesmo art. 13 determinava que os juízes não poderiam atrapalhar as operações do corpo administrativo

Este Decreto não criou um novo ramo. Estabeleceu apenas que a Administração não seria mais julgada pelas cortes judiciais. Seria necessário um novo ramo, que só surgiria mais tarde. Seria o Direito Administrativo.


terça-feira, 1 de julho de 2014

006 - #EuQueroEconomicidade

Berthold Brecht disse O que é um roubo a um banco diante da fundação de um banco? - e não brincava.

O senso comum ajuda a entender os princípios administrativistas da Eficiência e da Eficácia. Eficaz é o sujeito que sai para comprar um Rolls-Royce, e o faz. Eficiente é aquele que compra o Rolls-Royce bem barato. Há um terceiro princípio, o da economicidade: é o daquele sujeito que se pergunta se ele precisa de um Rolls-Royce.

Os órgãos de controle [notória e meritoriamente] se apressaram a fiscalizar os megaeventos Copa e Olimpíadas. Equipes de auditoria foram enviadas e reenviadas, planilhas examinadas, modificações em matrizes sofreram questionamentos.

Restou o mais estrutural e menos intuitivo: o por que. O Executivo colocou os megaeventos como inevitabilidade, restando apenas fazê-los o melhor possível. A Economicidade é inimiga dos inevitáveis: sempre é possível fazer diferente com os mesmos recursos. Princípio de aplicação menos perceptível, uma forma de fazê-lo é pela análise comparativa. Tomar-se a massa de recursos gastos com os megaeventos e saber o quanto faria esta massa se aplicada em dar esgoto para os cerca de 40% de brasileiros sem ele. Ou para criar as superescolas de que falou o Senador Cristóvão Buarque. O que traria maior ganho em, digamos, 50 anos?

E não é muito tarde. Vêm aí as Olimpíadas. Afinal, o que é o superfaturamento em um velódromo diante da construção de um velódromo?

segunda-feira, 30 de junho de 2014

005 – Cervejota faz a nação

A cerveja Skol lançou comercial para seu popular produto. Um grupo de brasileiros canta uma paródia [na verdade uma distorção completa] do que eles denominam hino da Argentina. Atraídos pela cantoria, os platinos são presos e despachados para Buenos Aires.

Choveram comentários no Youtube. Muitos críticos.

A criação de uma identidade nacional: trata-se de convencer milhões de pessoas que nunca se viram, que na maior parte moram distantes umas das outras, que catam lixo [algumas] e colecionam diamantes [outras] que todas têm algo em comum: a nacionalidade. E por ela devem morrer. E às vezes matar. Como fazer isso.

Os governos europeus dos séculos XVIII e XIX enfrentaram essa questão e a pesquisadora Anne-Marie Thiesse o revela em seu pequeno ensaio La création des identités nationales (Éditions du Seuil, 2001).

As respostas encontradas resvalam no cômico. Criam-se roupas típicas onde não existiam; forjam-se autores falsos para epopeias nacionais; transformam-se obscuros choques de bandos em gloriosas batalhas; escolhem-se reis ou exploradores de caráter duvidoso para serem heróis. Tudo para convencer pessoas de que elas são diferentes do Outro – o estrangeiro.

A artificialidade do Estado-nação é patente quando se vê que tudo o que há para unir as pessoas é antagonizá-las a algum vizinho. No caso, os argentinos.

O bem-humorado anúncio cervejístico  tem sua parcela de estupidez. Toda construção de identidade nacional é [no entanto e quase que por definição] estúpida.


sábado, 28 de junho de 2014

004 – E vocês ainda acreditavam que o Colonialismo fosse casto???

Uma notícia desta Copa informa que os rapazes gaúchos se revoltam porque as moças preferem estrangeiros. Não preferem: mordem, deglutem, regurgitam.

Gente, por favor:

VOCÊS AINDA ACREDITAVAM QUE O COLONIALISMO FOSSE CASTO??

Lênin, pessoal, estava certo. [Lênin estava errado]. O Imperialismo [e sua variante colonial] é uma forma de colocar excedentes, acumular, etc. etc. Corretíssimo. Mas também é uma estrutura mental, uma forma de se ver como pessoa e como nação. [O velho Vladimir errava ao não enfatizar isso].

O professor David Spurr publicou o ensaio The Rethoric of Empire (Duke University Press, 1993). Nele não analisa a relação colonial – mas o discurso da relação colonial – como ela é entendida [e justificada, ou suportada] por colonizadores e colonizados.

Contradição até o osso, o colonialismo parte de [e permanece em] uma antítese entre uma identidade e uma ruptura: o colonizado é igual ao colonizador [por isso podem se relacionar]; o colonizado é menos que o colonizador [por isso precisa dele].

Dez estratégias retóricas identifica o autor para resolver este choque. Interessa-nos a última, a Erotização, significativamente subtitulada Os Haréns do Oriente (cap. 11). O território colonizado é visto como disponível virgindade para o bravo explorador: matas, montanhas e moças.

Mas elas querem – precisamente. A retórica colonial não pertence ao colonizador; ela beneficia a ele, mas pertence também ao colonizado. Pertence a todos e todas nós, caros moços brasileiros e gaúchos.


sexta-feira, 27 de junho de 2014

003 – A Alternativa ao Estado

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E abrirei a minha boca em parábolas; e anunciarei as coisas que estão escondidas desde a fundação do Mundo – esse trecho do Evangelho de Mateus (13,35) inspirou a obra do antropólogo francês René Girard Des Choses cachées depuis la Fondation du Monde (Paris, Bernard Grasset, com tradução em português pela Paz e Terra).

Em uma sociedade primitiva a violência se espalha por puro instinto de imitação – uns fazem mal aos outros porque outros já lhes fizeram mal antes e segue em mecanismo autoperpetuante. Só há uma forma de quebrar isso: escolhe-se uma vítima, concentra-se nela todo o mal da comunidade e ela é então abatida. Tal sacrifício se repete via rituais, geralmente substituindo-se a vítima humana por um animal. Faz-se a paz. São os mecanismos da rivalidade mimética e do bode expiatório.

Perturbam, certamente, as semelhanças com as liturgias de sacrifício nas igrejas cristãs, mas o foco aqui não é esse. O antropólogo nos lembra as dificuldades inerentes a manter o mínimo de não-violência em grupamentos sem autoridade. Estamos acostumados a ter polícia, juízes, fiscais. Mas nada disso é natural. Nós nos queixamos [às vezes com razão] de essas pessoas não cumprirem a contento seu trabalho.

A alternativa à autoridade central, no entanto, é a violência mimética: uma violência automultiplicadora, em eterna propagação. A forma que as sociedades sem Estado tiveram para quebrar essa engrenagem destrutiva foi o bode expiatório.
Sem o Estado, muito pior.

quinta-feira, 26 de junho de 2014

002 – Sentença administrativa sobre fim de tratamento médico

O Conseil d État da República francesa tomou as manchetes neste 24 de junho sobre o caso Lambert. É problema falado há meses na imprensa francófona, atiçada por grupos religiosos.

Um trágico acidente esmagou a coluna de Monsieur Vincent Lambert há seis anos. Tornou-o paraplégico. Tem vivido no Centro Hospitalar Universitário da sua cidade, incapaz de se alimentar sozinho.

Um diploma legal de 2005 autorizou as autoridades médicas a suspender o tratamento médico, se entenderem que a manutenção do mesmo configura uma obstinação não-razoável em uma manutenção artificial da vida. É a chamada Lei Leonetti, nome do deputado que a propôs. Note-se que a lei não fala de eutanásia, de resto não prevista na legislação francesa.

A família do paciente se dividiu: a esposa quer a interrupção do tratamento. Os pais pugnam por sua continuação.

No Brasil este seria problema do Judiciário. Na França ele segue pelos trâmites de uma justiça aqui inexistente, a justiça administrativa. O caso passou desde o ano passado por dois tribunais administrativos. Objeto de recurso, chegou à suprema Corte administrativa, o Conselho de Estado, na sua formação mais solene, os 17 conselheiros da Assembleia do Contencioso. Os quais decidiram pela interrupção do tratamento.

A decisão não decidiu. Os pais do paciente entraram com recurso na Corte Europeia de Direitos Humanos e esta determinou que não fosse tomada nenhuma medida tendente a suspender o tratamento, até o julgamento do caso. Demoras acontecem, lá e cá.

quinta-feira, 19 de junho de 2014

O Direito Administrativo antes de si mesmo

O Direito Administrativo surgiu no dia 13 de dezembro de 1799 em Paris. No dia 12 de dezembro ele não existia. Ao contrário de seus venerandos companheiros direitos Civil e Penal a sua origem não se perde na noite dos tempos. Não conheceu códigos de Hamurabi nem uma evolução lentíssima. Veio da vontade de um grupo de homens, e veio de um corte.

Dois cortes, na verdade, representados por duas datas. Uma delas [já designada acima] marca a publicação da Constituição de 22 Frimário do Ano VIII – Frimário por ser tempo frio, e ano oitavo da Revolução – a qual, segundo os revolucionários, partiria a História humana em dois.

A primeira Constituição revolucionária não o era tanto – a guilhotina e o poder arrogante do General Bonaparte já tinham dado uns bons socos nos ideais de liberdade. O Poder desse general era tão grande que consta na própria Constituição, como primeiro Cônsul – cargo obviamente criado pera ele.

O artigo 52 estabelecia Sob a direção dos cônsules, um Conselho de Estado é encarregado de redigir os projetos de ei e os regulamentos de administração pública(...)  e até aí nada de mais. Apenas mais um órgão de auxílio ao poder executivo. No que este bisonho artigo sacudiu o mundo do Direito foi na sua continuação ... e de resolver as dificuldades que surgem em matéria administrativa.

E esse órgão existe até hoje e as suas decisões criaram um novo saber jurídico – um Direito do Poder. Antes o Poder não tinha Direito – só tinha poder. A outra data marcante queda para a próxima crônica.